O homem por trás do capitão

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O filme “Tropa de Elite” provocou inúmeras e calorosas discussões desde que foi lançado. Dentre os personagens, um chama a atenção: o Capitão Fábio, um policial corrupto muito bem interpretado por Milhem Cortaz. Morador do bairro, ele concedeu entrevista ao Daqui Perdizes/Pompéia no Bar Cortás, na Av. Prof. Alfonso Bovero, 584, que ele deu de presente ao pai.
Milhem, paulistano nascido em 6 de dezembro de 1972, é casado há nove anos com Ana Beatriz Franco Brisola, filha do jornalista Dirceu Brisola, e não tem filhos. Atualmente está na peça “Homem sem Rumo”, no Sesc Avenida Paulista, até 16 de dezembro. No ano que vem estará no cinema como um travesti, num filme de José Eduardo Belmonte. O papel que o destacou foi o Peixeira, no filme “Carandiru”, de Hector Babenco (2003).
Na televisão, fez duas novelas: “Essas Mulheres” (2005) e “Cidadão Brasileiro” (2006), na Record.

Acompanhe um pouco do que ele disse na entrevista.

O filme Tropa de Elite é que está te dando mais visibilidade?
Sim, claro. Carandiru foi bom, me deu respeito no meio e reconhecimento do público. Os outros filmes que eu fiz foram de baixo orçamento, poucas pessoas assistiram, tirando “O Cheiro do Ralo”, um filme cult. Tropa de Elite me popularizou, tipo novela das oito, é uma coisa meio absurda, nunca tirei tanta foto na minha vida, nem lembro com quem conversei, é uma coisa muito maluca. Fico feliz com o sucesso que o filme está fazendo. O filme se discute, isso é uma coisa que me deixou bastante feliz.

O pessoal fez um laboratório antes do filme, você também fez?
Eu fiz, sim, claro, e fiz os dois, da Polícia Militar e do BOPE. Me machuquei bastante, foi bem puxado. O método da Fátima Toledo não é muito prazeroso, ela vai na dor, no sofrimento, mas estava no pacote. É um método que eu nunca tinha feito, mas funciona. Para eu fazer esse filme, tinha que passar por isso.

E na hora de filmar você leva toda essa experiência…
No cinema você não cria o personagem em cima do texto, mas em cima da vivência. Então eles não te dão situação nenhuma, você vai criando de dentro pra fora. Quando o personagem existe, eles falam ‘agora esse personagem vai fazer parte desta história, como é que você se encaixa nele’? Então foi a forma mais legal para eu criar o personagem e humanizar aquele cara. Quando eu cheguei lá, eles não me deixavam ler o roteiro e diziam para mim que ele era do mau. Conforme os ensaios foram passando, eu falava: ‘ele não era tão mau assim’. Ele era um cidadão brasileiro, que precisava de dinheiro para sobreviver.

Um cidadão que passou necessidade e vê o Brasil que está aí…
Exatamente. É que as pessoas, quando lêem o roteiro só vêem o que está escrito. Eu, como ator, tenho que dizer aquilo que não está escrito. Então eu fiquei recolhendo dados para entender o caráter dessa cara, por que ele fazia isso. E tinham duas coisas que me impossibilitavam de achá-lo mau. Uma delas é que ele não mexia nem com dinheiro do tráfico nem do jogo do bicho nem de meliante na rua. No início do filme tem uma frase que para mim é importante: “Às vezes o que forma um homem é o ambiente onde ele vive, não é o caráter”. E dentro do ambiente da polícia, não sendo dinheiro do tráfico, do jogo do bicho e de meliante, o restante da forma do trabalho informal que eles têm é tão honesto quanto o cara que faz bico em boate. Mas é ilegal para a sociedade. Era um cara que tinha necessidade de ganhar mais dentro da honestidade dele. O outro era assim: os dois policiais novatos fazem uma grande besteira, que é pegar o dinheiro do jogo do bicho do comandante, que vai executar o cara, mas em nenhum momento ele vai na sala do comandante e fala que foram os dois. Ele assume. Isso é de uma integridade humana que não dá para esquecer. Eu bati de frente com eles: se o cara fosse mau, ele estaria se lixando para todo mundo.

Se ele fosse mau, os dois não teriam ido lá para salvá-lo…
Ele não se aproveita dos dois. Na boate ele bota os dois a par de como o esquema funciona, e diz: ‘o meu esquema é honesto, preciso de dinheiro, tenho filho, tenho que sobreviver, não posso morrer’. Ele é bem claro.

E como foi filmar nas favelas do Rio? Foi impactante para quem mora aqui?
Eu sou um cara que vim de filmes fortes, de Carandiru, e é um universo que eu fiquei muito familiarizado. O ir ao morro não me assusta, o que me assustou é a forma como as pessoas vivem no morro. Do menino de seis anos à mulher de 50, todos estão armados, parece realmente um filme de guerra, é uma coisa que eu nunca tinha visto, nunca vi tanta metralhadora e tanta granada.

O José Padilha, diretor do filme, deu algumas entrevistas dizendo que negociou para poder filmar nos morros.
Negociou, mas o morro é muito grande. Tem muita gente que só chega à noite e uma coisa que a produção pensou mas não deu muita bola foi que o Rio está acostumado com filmagem em morro, mas não com 50 atores vestidos de polícia. Depois da meia-noite e da quinta carreira, os caras já estavam de um jeito esquisito com você, já não discerniam mais o que é e o que não é, entendeu? Foi um grande perigo.

Mas vocês filmaram de madrugada?
A gente filmou em cinco morros, durante sete dias de madrugada, das 5 da noite às 7 da manhã. Filmamos no maior pico de violência e de probabilidade de dar tudo errado. Mas como a arte protege, essas coisas dos deuses, eu posso te dizer que todo esse perigo até ajudou o filme. Era uma coisa que não deixava nem a equipe nem os atores muito acomodados, muito à vontade.

Mudando de assunto, como é a televisão?
É a coisa mais difícil para mim, é uma linguagem muito espontânea, que eu ainda não tenho domínio algum. Entre cinema, teatro e tevê, eu acho a arte mais difícil de fazer. Porque essa coisa relaxada de cotidiano é muito difícil. É por isso que os não-atores funcionam tanto na tevê, porque eles não têm peso, é a vida deles do jeito que eles disserem e é aquilo mesmo.

Quanto tempo você já está na televisão?
Desde “Escrava Isaura”, em 2004, estou na Record, uma casa que eu tenho muito carinho, só me deram papéis bacanas. Fiz o Lobato em “Essas Mulheres”, um personagem muito bacana, um cara que não tinha julgamento nenhum de ninguém: as pessoas batiam nele e ele agradecia, cuidava do coronel e era tão bonzinho, foi tão querido, que termina a novela batendo no vilão e casando com a mulher dele.

Cinema dá para aprofundar o personagem, tem um tempo curto de filmagem e acabou. E televisão?
São oito meses gravando 30 cenas por dia; o cinema se grava uma, durante nove horas, são vários enquadramentos; a tevê não, são quatro câmeras e 20 cenas no estúdio. Se quiser voltar, tem que errar, esquecer o texto ou fazer alguma coisa, porque se o texto estiver correto, vai. Eu acho a televisão super magnética e me instiga muito. Ainda não consegui relaxar dentro da televisão. Super invejo meu amigo Wagner Moura de ir lá e fazer da maneira como ele fez, mas ele me esclarece que nunca pediram nada para ele, o deixaram à vontade, tinha o tempo que quisesse para fazer. Carreira de ator é dureza, custa muita coisa importante para dar certo: talento, vocação, sorte. Mas duas coisas são fundamentais: disciplina, que se você não tiver você, não vence, e a outra é sorte, e eu sou um cara de sorte.

O que você quer dizer com disciplina?
É saber que tem que levantar cedo, de mau humor, para ensaiar e no chuveiro tem que aquecer voz e que você vai chegar lá e tem que alongar e tem que respeitar a pessoa que está na tua frente e tem que estar concentrado para não atrapalhar as outras 19 que estão ali. Ter essa disciplina se torna um ritual, não uma rotina. Ter disciplina é você ensaiar num dia e o cara te apontar coisas boas e coisas que estão faltando e no dia seguinte você continuar fazendo as coisas boas e mostrar as coisas que o cara te falou, isso é disciplina. Meu mestre de capoeira, Silvestre, disse a frase que norteia minha vida: “Quem corre cansa, quem reza alcança”, ou seja, não pule estágios, vai caminhando.

Até dezembro você está no teatro também?
É, com a peça “Homem sem Rumo”, do norueguês Arne Lygre, um autor contemporâneo. Ele escreveu uma tragédia que questiona o poder e o dinheiro, é um empresário que aluga pessoas para formar uma família ideal, ele paga um salário para essas pessoas serem da sua família. Um espetáculo bastante triste, difícil. A tristeza me fascina.

Por quê? Ela te dá mais elementos para gostar da vida, talvez?
Talvez porque ela me faça uma pessoa melhor. Eu gosto de falar disso, de mostrar as mazelas para as pessoas, as nossas dificuldades de nos entendermos, obstáculos que a gente cria para ser feliz.

Mas você é feliz?
Sou tranqüilíssimo, só sou meio triste porque ultimamente caiu minha ficha de que sou muito melhor artista do que pessoa, mas estou melhorando. Eu não erro no teatro as coisas que eu erro na vida. Me sinto inferior ao artista que sou, eu deveria ser muito melhor pessoa e, quem sabe, seria melhor artista? Isso me entristece… Estou exagerando, mas é a forma como enxergo a minha vida. Me acho super bacana, gosto de mim, por isso me permito também me avacalhar.

Qual tua ligação com Perdizes? Por que um bar aqui?
Moro aqui faz sete anos e gosto muito. Muitos atores paulistanos de teatro moram aqui e abri o bar pela facilidade e proximidade da minha casa. Como é para o meu pai, foi uma forma de unir a família. Ele fica próximo de mim. Se eu tiver cinco minutos, passo aqui para dar um beijo nele. Sabe aquele negócio do Fiat Uno que você ganha aos 18 anos? Queria devolver isso para o meu pai, que batalhou a vida inteira. Era um presente, um estímulo novo para ele.

O que você freqüenta no bairro?
O Souza, comida barata e pessoas simpáticas. Tem a Galeteria Pompéia, na esquina da Tavares Bastos, um lugar agradável, garçons legais, limpo, bonito. Estou mais freqüentador do bairro, por causa do bar. Aqui tem bares incríveis, não preciso mais ir para o centro. Meu barato é trazer os amigos para conhecer. Esta calçada por si só já é um bairro: tem farmácia, um português que vende bolinho de bacalhau, um boteco que vende espetinho e pastel de feira, uma loja de cortina, uma de R$1,99, uma lotérica… é o máximo.

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