Entre o vício e o lazer

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Já faz um tempo que os relacionamentos, quaisquer deles, estão se modificando. A chegada do computador e, principalmente, da internet transformou as pessoas e o modo como elas se relacionam com o mundo. Com as férias escolares, esse é um assunto que está em todas bocas: o excesso de horas na frente de um computador. Crianças, jovens e adultos, indistintamente, têm se dedicado por muito tempo a teclar em salas de bate-papo, entrar em sites de relacionamento, a jogar sozinhos ou mesmo em grupo, pela rede. Mas quando o lazer se torna um vício? Essa linha invisível e discutível é que separa o lazer saudável da compulsão perigosa.
Para aprofundarmos o assunto, conversamos com a psicóloga Katty Zúñiga Pareja, formada pela PUC em 1991. Peruana, ela veio ao País, há 16 anos, para fazer faculdade e acabou se casando com um brasileiro e tem dois filhos pequenos. Além de várias especializações, ela é membro do NPPI – Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática da PUC-SP. Esse núcleo foi criado em 1995 e estuda as questões situadas nas interfaces entre Psicologia e Informática, ajudando pessoas que fazem uso excessivo ou patológico da informática (jogos e sexo virtual, por exemplo), e também os que têm medo ou ansiedade na sua utilização. Katty ainda atende crianças, adolescentes e adultos em seu consultório (Rua Caetés, 646, telefone 3865-0531), em Perdizes. Acompanhe aqui nossa conversa.

Ficar muito tempo no computador é considerado vício?
As pessoas estão ficando cada vez mais tempo no computador e isso está aumentando. A internet é uma ferramenta que faz parte da nossa vida. Fala-se muito em tempo de uso, mas será que isso seria um parâmetro adequado para avaliar uma coisa dessas? Eu penso que não, a gente poderia pegar um outro critério: como a pessoa usa o computador. Uma pessoa que fica 10 horas no computador, poderíamos dizer que é viciada, é muito tempo, mas é como a pessoa faz uso dele que vicia. Uma pessoa não viciada sabe até onde ela pode ir e como ela está, como ela pode usar isso em beneficio próprio, e não chegar uma hora que acaba se perdendo e isso vira compulsão, vício.

Eu fico até 10 horas por dia, mas acho que o que vicia é jogo e bate-papo…
Por exemplo, se a gente usa esse tempo todo para trabalhar, se comunicar com os amigos ou colegas de trabalho, tudo bem. Um vício acaba tomando conta da gente. É diferente de uma pessoa que de repente se sente dominado pelo uso. O hábito não nos prende e é uma coisa boa, que não interfere nos nossos outros compromissos, no nosso comportamento.

O vício priva a pessoa do convívio com o resto do mundo?
Exatamente. Quando uma pessoa entra na internet só pra acessar sites pornográficos, por exemplo, e só essa preocupação ele tem, está sempre pensando nisso o tempo todo e toda vez que ele entra ele acessa isso, então ele tem uma compulsão. Essa é a diferença de uma pessoa que trabalha 10 horas e além de trabalhar pode entrar numa sala de bate-papo, pode jogar, pagar contas. Uma compulsão acaba se tornando num vício.

Então são dois vícios: o vício que ele tem mais o computador!
Aí podemos pensar que acaba aumentando, potencializando o grau do vício. A internet é uma ferramenta fantástica, que nos dá toda essa abertura, mil possibilidades e isso faz com que a pessoa acabe se perdendo naquilo.

E quando uma pessoa sabe que está viciada?
Isso é um ponto importante, porque justamente um dos critérios seria que a pessoa não aceita que ela é viciada, não aceita críticas. O olhar do outro é importante nessa avaliação e não é podando que ela vai mudar. Eu acho que outras coisas podem estar envolvidas nisso tudo.

Que tipo de outras coisas?
Por exemplo: por que essa pessoa fica tanto tempo na internet? Ela acaba se privando das outras coisas: amigos, relacionamentos. Mas por que ela deixou de encontrar os amigos e outras coisas reais? Ela acaba se deixando absorver por aquilo.

Quem está viciado atualmente, adolescentes ou adultos?
Lá na clínica a gente recebe muitos casos. São pais preocupados com os filhos que jogam muito na internet e acabam taxando o filho como viciado, mas será que ele de fato é? O olhar dos pais é importante: não é errado o filho entrar na internet, jogar, mas tem que fazer tudo com controle. Até os 7 anos de idade eles não sabem bem a diferença entre fantasia e realidade, por isso é importante a presença dos pais. Até uns 12 eles não têm muitos parâmetros de limites, por isso os pais têm que colocá-los. Os de 18 anos jogam muito, e cada caso é um caso, mas não dá pra dizer que tal pessoa é viciada. Se a pessoa acaba criando esse hábito até o ponto de se tornar uma compulsão, isso pode se constituir um vício.

E tem casos de adultos?
Temos muitos homens e mulheres também, geralmente relacionadas a relacionamentos: salas de bate-papo, traição, pessoas que acham que estão sendo traídas. Mas essa é outra questão, sobre o que é traição pra cada um.

Traições virtuais…
A internet dá uma abertura incrível, ela é fascinante, mas o ser humano é mais inteligente e cabe a cada um de nós saber realmente o que fazer com isso.

E como se trata uma pessoa viciada em internet?
Inicialmente damos uma orientação à pessoa, um significado a tudo aquilo na vida dela. A partir daí podemos pensar por que essa pessoa recorre a isso? Com certeza essa pessoa acaba sendo convidada a fazer uma terapia.

As pessoas aceitam bem a terapia?
Aqui no meu consultório eu tenho alguns casos que eles começaram e continuam a terapia. Já na clínica da PUC temos um projeto em que atendemos pessoas que se dizem viciadas: o contato é através de oito trocas de e-mails, apenas orientando a pessoa. Lá pela quinta, sexta troca percebemos que as próprias pessoas sentem que têm outras coisas por trás de tudo isso. Ou está insatisfeito no trabalho, ou o relacionamento em casa não é legal, uma série de coisas. Inclusive indicamos que procure uma terapia.

O vício da internet é uma muleta que esconde outro problema?
Sim, até agora é isso que observamos.

O uso cada vez mais cedo do computador pode levar ao vício?
Não. Inclusive a internet e toda tecnologia faz parte das crianças, elas já nasceram nesse período. Podemos pensar que, na nossa época, a gente brincava mais, mas por isso é importante o olhar dos pais. Já ouvi falar que muitas escolas não conseguem suprir as expectativas das crianças, porque elas estão crescendo com muita informação e tecnologia. As crianças muitas vezes não jogam apenas por jogar, elas aprendem muitas coisas. Eu acho que é muito rico, mas tem que ter limite, como qualquer outra coisa, como tevê, jogar bola – é o uso que a criança deve fazer, junto com tomar banho, fazer deveres da escola, comer.

Mas isso na adolescência é mais complicado, não?
É uma fase um pouco mais delicada, onde eles estão se transformando, deixando de ser crianças e ainda não são adultos. Aí eles acabam querendo se impor, mas por isso que o diálogo dentro de casa é muito importante.

O que vicia mais?
Muitos adultos jogam também. Num paralelo com a tevê, que desde crianças até idosos vêem, cada pessoa tem que ter um parâmetro, mas com criança e adolescente o olhar dos pais é importante. Quando são adultos e sabem lidar bem com todas essas coisas, não tem nada de mais estar num bate-papo, conhecer pessoas. Só tem que tomar alguns cuidados, se escutam milhares de coisas…

Histórias de estupros, seqüestros, pedofilia…
Por isso é importante orientar os jovens a não dar o telefone, nem endereço.

A falta de identidade na internet propicia tudo isso?
A internet proporciona várias coisas positivas também: ali o adolescente não é excluído, muitas vezes, no presencial, os grupos são muito fechados, então o adolescente não entra. A net dá essa abertura, mas ele não pode só ficar nisso, tem que trazer para o real, não adianta viver no mundo virtual.

Os tímidos viram um monstro de sedução…
É o anonimato, mas já vimos alguma coisa nesse sentido: os tímidos na internet vão se abrindo na vida real, uma vez que ela consegue entrar, consegue se abrir. Mas é importante, nesses casos, um acompanhamento, uma terapia, por que ela consegue tratar melhor na frente da tela do computador.

Nas férias aumenta o número de pais preocupados com os filhos?
Sim, por isso é importante proporcionar outros tipos de atividades aos filhos. As crianças e os adolescentes precisam fazer outras coisas: parque, encontrar/ligar para os amigos, ir ao cinema, enfim fazer outras atividades fora de casa. E adultos também…

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