Dor, luta e renascimento. Assim pode ser descrita a história de Bell Marcondes, 50 anos, uma mulher que conheceu o inferno das drogas. Munida de garra e vontade de viver, ela conseguiu dar a volta por cima.
Entre os anos 1970 e 90, Bell atuou como produtora artística e musical, administradora e divulgadora em escritórios ligados à carreira de Simone, Roberto Carlos, Milton Nascimento, Zé Ramalho, Fábio Jr., Zélia Duncan, entre outros. Também trabalhounos bastidores de espetáculos como Canta Brasil, veiculado pela Rede Globo, em 1982, e shows da campanha pelas Diretas Já, que tinham nomes como Chico Buarque à frente.¹
Bell foi apresentada à cocaína por “uma mão amiga”, mas não se isenta: “A dependência química já existia no meu organismo (…). Eu apenas detonei o gatilho quando usei cocaína pela primeira vez. (…) Usar e abusar de drogas é de inteira responsabilidade minha”.
A derrocada foi rápida e impiedosa: tudo que possuía, Bell vendia para comprar droga. Todo dinheiro que ganhou foi usado com uma só finalidade: álcool, cocaína, maconha… A perda da mãe foi um dos momentos mais dolorosos de sua vida, culminando com sua ida para as ruas, onde morou por quatro anos.
Depois de passar por vários hospitais psiquiátricos e muito sofrimento, Bell conseguiu se reerguer. Há mais de sete anos “limpa”, como diz, continua lutando pela recuperação. Atualmente, Bell mora numa casinha em Perdizes, com a cachorra Pop, sua amiga inseparável, e conta sua história no livro “Estou viva, não uso mais drogas – O inferno de Bell”, lançado em 2006, pela editora Semente.
Como foi seu primeiro contato com as drogas?
Eu tinha um ritmo de trabalho alucinante, mas fazia o que gostava, estava com uma pessoa com quem eu me dava super bem, não tinha chefe, me reportava só a Simone. Não tinha muito desgaste. Certa vez vim a São Paulo fazer um show, na Regine’s, uma boate da moda, e precisava comprar um vestido longo. Eu estava no Maksoud Plaza. Liguei para uma amiga para que ela fosse comigo comprar a roupa. Ela tinha passado as férias na Bolívia e teve acesso à cocaína. E ela trouxe. Quando eu falo que é pelas mãos de um amigo que a gente usa droga dizem que um amigo não faria isso… Mas não é um estranho que vai oferecer. É pela mão de um amigo mesmo, não tem como usar drogas de outra forma. Eu experimentei e neste dia já fiquei estranha. Imagina cheirar um monte de uma cocaína com pouca mistura e o que virou aquilo na minha cabeça? Meu organismo pedia mais. De volta ao Rio, essa mesma amiga pediu que eu hospedasse um francês. Ele fazia tráfico. Ou seja, eu cheguei de cara no pior, muito rápido. Se eu não tivesse usado, não teria dado o start da minha dependência química. Ela estava lá quietinha, eu não sabia que era dependente química. E eu era aquela profissional que trabalhava super sério. Como é que, de repente, eu era a maior ‘cdf’ profissional e viro a maior cocainômana? Não condiz.
De que maneira isso se refletiu no seu trabalho?
Estávamos gravando um especial de Natal para a Rede Globo e a (jornalista) Marília Gabriela foi entrevistar a Simone. Quando eu chego no camarim, a Simone chorava. Perguntei o que tinha acontecido, mas ela não disse na hora. No dia seguinte tínhamos uma gravação no apartamento dela, com a participação do Chico Buarque e do Milton Nascimento. Imagina a Rede Globo com o diretor de eventos especiais, toda a equipe, a equipe dos artistas, as gravadoras… Uma loucura! Pensei: hoje não vou cheirar, pelo amor de Deus, eu não podia cheirar! Mas, as duas da manhã fui e cheirei. Havia levado a cocaína no bolso. Seis horas da manhã, quando acabou tudo, o que eu queria era me mandar para um bar e beber. Sempre usei cocaína com álcool, sou uma dependente cruzada. O álcool com a cocaína vira uma nova droga. Bom, nesta noite já estava saindo e a Simone me chamou para conversar.
Que idade você tinha?
24 anos. E a Simone começou a me dizer que eu era uma menina, e falou, falou… ‘Vamos procurar ajuda’. Hoje, quando se fala em procurar ajuda, a pessoa tem narcóticos anônimos, alcoólicos, neuróticos, hospitais; em qualquer posto de saúde que se vá eles sabem o que é uma dependência química. Mas, em 1980, ninguém sabia direito o que era isso. A cocaína estava entrando naquela época no País. Todo mundo que era jovem, que estava meio entrosado, usou cocaína. Foi igual a maconha nos anos 70.
Quem tinha propensão à dependência foi mais prejudicado…
Sim. No meu caso a dependência foi instantânea. Primeiro pelo pó que eu cheirei, não foi qualquer tranqueira. Isso, que no começo para mim era status, foi um complicador. Sempre digo que eu não morri porque o capeta me pôs pra fora do inferno e Deus falou que não era chegada a minha hora. Dessa primeira tentativa da Simone para me ajudar, chegou a um ponto em que ela disse: ‘Ou você pára ou vai embora, pára de trabalhar. Você escolhe!”. E aí? O meu trabalho era magnífico… Eu parei e fiquei um ano dentro de casa cheirando sem parar. Depois voltei para São Paulo, fiquei muito mal. Abri uma produtora, fiz vários shows, lançamentos… E começou tudo de novo. Eu era uma das profissionais mais bem pagas do Brasil e queimei tudo, cheirei tudo. E não é só o que se gasta para cheirar cocaína. É o monte de gente que vem junto, baladas em restaurantes caríssimos – é claro que a gente não comia, a gente só bebia… Eu perdi tudo.
Quando parou de trabalhar, como fez para se manter?
Eu ganhei muito dinheiro! Deu para ficar um ano louca. A minha casa, você assistiu o filme do Cazuza? Sabe uma casa que eles iam sempre antes das baladas? A minha casa era aquilo lá. Antes e depois da balada ia todo mundo para a minha casa. Era muita droga, muita bagunça. Minha mãe um dia falou ‘ah, essas más companhias!’. Eu era a má companhia! Só que uma hora o dinheiro acabou. E vendi tudo que tinha. Só não vendi o fogão, o armário da cozinha… Conheci uma moça que vendeu até o vaso sanitário. Vai vendendo… É um absurdo o que é a dependência química.
Você chegou a ficar algum período sem usar cocaína?
Não, foi uma constante. Eu jurava muito que não ia usar. Chegou uma hora que não dava mais. Eu não tinha mais físico, não tinha mais dinheiro, a minha produtora… Eu falava que o Brasil era o culpado da minha desgraça! Fui para o Japão trabalhar e lá conheci o Speed, uma droga sintética que tem heroína misturada. Estava cada vez pior. Trabalhava em uma casa de música brasileira e ganhava para beber. Olha, foi uma maluquice. Você imagina o que era a noite com drogas? Era festa, balada… Voltei para o Brasil com dinheiro e começou o gasta, gasta, e troca dólar… Só que uma hora acaba. E sempre existia uma desculpa para usar que era assim: eu estava fora do Brasil e lá não tinha maconha, pô! Lá não tinha cocaína, só heroína, pô! Coitada de mim, não é? E comprava um monte. Eu pegava um táxi, ia pra boca, comprava o pó, cheirava e assim ia. Só que o dinheiro acabou rápido. E eu já estava com problemas físicos. Fisicamente era um horror. Moralmente, estava contaminada pela bandidagem, pela safadeza…
Qual foi o pior entre os piores momentos?
Tudo que eu fazia estava comprometido com essa barra que eu estava vivendo. E já estava uma barra bem pesada na medida em que eu não tinha mais dinheiro. Então, o que eu fazia? Pegava o salário da minha mãe. Eu bato muito no peito dizendo que eu nunca roubei nenhum artista. Legal, não roubei mesmo. Mas eu pegava o dinheiro da minha mãe. Ela não via mais a cara do dinheiro dela. Minha mãe era uma senhora doente. Hoje, a culpa… Eu tento me perdoar, mas é muito difícil. Dói muito. Fui morar com a minha mãe em um hotel de quinta categoria, na praça das Bandeiras. Minha mãe já não andava direito, já quase não conversava… E lá não tinha restaurante. Se eu estivesse em casa, saia e comprava almoço pra ela. E se eu não estivesse? Não comprava… E um dia fiquei 15 dias fora. Minha mãe ficou lá sozinha, sem medicação, sem comida… É uma história de muita dor. Falo que tenho o carnê da droga por tudo que fiz. Vejo as pessoas com quem trabalhei, pessoas maravilhosas, e chega uma hora que você não consegue fazer mais nada… Minha mãe sofreu tanto na minha mão, mas tanto, que quando lembro dela é difícil usufruir alguma coisa hoje. Quando a mamãe faleceu, eu não tinha dinheiro para enterrá-la. Depois que ela faleceu o dinheiro acabou definitivamente e eu fui para a rua, virei indigente.
Foi a partir de então que sua vida começou a mudar… Ficou durante quanto tempo morando na rua?
Na rua e em lugares muito ruins, um misto de horror, fiquei quatro anos e meio. Completamente sem identidade. Pedia esmola e ia tomar cachaça, cheia de piolhos na cabeça… Às vezes estava num bar e tocava uma música em que eu trabalhei na gravação. Era muito louco. Chegou uma hora que eu não funcionava mais, com ou sem drogas. Passei por várias psiquiatrias, hospitais, e no Hospital das Clínicas funcionou bem. Como recomeça a vida? É tudo um processo. O mesmo amigo que me tirou da casa em que eu morava na Bela Vista e me levou com a minha mãe para um sítio acabou me ajudando. Eu tinha feito um trabalho com ele e tinha um dinheiro para receber. E aí achei uma pensão… Tem um capítulo do livro que se chama ‘A rede do bem’. É a rede que me sustenta, amigos que me ajudam em todos os sentidos.
Faz quanto tempo que está em recuperação?
Tem sete anos, três meses e sete dias que eu não uso nada (entrevista feita em 7 de março). Se eu bobear, se não for para a minha recuperação, para a minha terapia, se não estiver 24 horas em recuperação, eu tenho vontade de usar. Essa é a grande verdade. E é prazeroso fazer o acompanhamento. Fiz grandes amigos, amigos verdadeiros, amigos que nunca se interessaram por nada que eu tinha porque eu não tinha mais nada. Então, eu sei que a amizade é por mim mesma.
Hoje você conta sua história em escolas, empresas e até mesmo em casas de famílias. De que maneira isso te ajuda?
Conto a minha história e levo meus livros para vender. É daí que tiro meu sustento. Não me importo em contar tudo que eu passei. Quanto mais eu falo, mais fortaleço a minha recuperação. Hoje de manhã sai do INSS e queria tomar um porre! Mas aí… Penso que não vai adiantar nada, só vai piorar. Mas não é fácil! Nas palestras mostro que não vale a pena usar drogas. Dizem ‘ah, mas eu controlo’! Não controla. Chega uma hora que não controla mais. Toda pessoa que dá escândalo em festa, sai bêbada, é muito propenso a ser dependente químico ou alcoólatra. Não é a festa inteira que está mal; está mal 10% da festa. E muitos não sabem que têm propensão à dependência porque não tem teste, como no caso do diabético. O alcoolismo é cruel, vai roubando a vida… Nenhuma doença é legal, mas essas duas levam à loucura total. Chega uma hora que se não tem cerveja, toma álcool. Não tem álcool, toma cândida, que foi o meu caso. Consegue me imaginar num palco fazendo shows, trabalhando com Simone, Roberto Carlos, e depois como indigente na rua?
Você é feliz?
Sim, sou. Hoje, especificamente, foi um dia muito pesado para mim. Fui às cinco da manhã ao INSS para tentar conseguir um auxílio doença. Eu tomo medicação cara e escuto dizerem assim: ‘Não vai dar para ser por muito tempo, só 45 dias…’ Gozado, né? Se eu for usar droga custo muito mais caro para a sociedade. Eu paguei o INSS e ainda pago 240 reais por mês. E na hora que preciso, eu não tenho. Aí você assiste o jornal e vê que está tendo falcatrua no INSS.
É preciso força de vontade para vencer e se recuperar…
É boa vontade, porque força não leva a nada, uma coisa forçada. Se você tiver boa vontade aí sim você consegue. Mas é muita programação, conviver com pessoas que estão em recuperação e para mim é fundamental contar a minha história.
1. Fonte: revista Carta Capital