Signos da modernidade

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Assim como foi com o jornal, a televisão e o cinema, as mídias digitais interferem no modo de vida da sociedade, na cultura e nos costumes. As relações humanas estão em constante mutação, ainda mais em tempos de Internet e com todos os mecanismos que ela oferece, como as comunidades virtuais e os programas de comunicação instantânea.
A especialista em Semiótica, Lucia Santaella, 62, diz que a produção de novas linguagens é irreversível. Por conseqüência, quem não tiver acesso a esses meios acaba sendo excluído. Sem falar que o preconceito em relação às novas tecnologias ainda existe, pois há quem acredite que o desenvolvimento tecnológico é uma coisa separada do ser humano.
Natural de Catanduva, interior de SP, casada, mãe de dois filhos, Lucia é professora titular da PUC-SP, onde dirige o Centro de Investigação em Mídias Digitais (CIMID). Entre outras atribuições, é presidente honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica e Vice-presidente da Associación Mundial de Semiótica Massmediática y Comunicación Global, México. Com 28 livros escritos e 200 artigos científicos publicados em periódicos no Brasil e no exterior, Lucia trabalha em seu mais novo projeto: o livro ‘Linguagens líquidas na era da mobilidade’, com lançamento previsto para o segundo semestre.
De que maneira os signos, principalmente aqueles referentes ao mundo digital, interferem no dia-a-dia das pessoas atualmente?
A Semiótica é uma ciência que estuda todos os tipos possíveis de signos, que devemos tomar como sinônimo de linguagem: visuais, sonoros, quadrinhos, pinturas, desenhos e os discursos verbais. Ou seja, chamamos de signos as linguagens que são formas de representação do mundo. Principalmente depois da Revolução Industrial, os signos e os meios de produção de linguagem foram crescendo. Começa com o telégrafo, com a câmera fotográfica, depois a explosão do jornal, aí vem o cinema, rádio, televisão que são responsáveis pelo que chamamos de cultura de massa. Mas, dos anos 80 pra cá, uma nova revolução começou a acontecer a partir do computador. No momento em que os computadores se conectaram entre si, emergiu o que chamamos de cibercultura, uma cultura de ciberespaço, cujo estado da arte hoje é o Second Life. Ao invés de você se comunicar na Internet através de texto, tem-se um mundo paralelo onde você cria uma figura que te representa. Até empresas estão comprando terrenos no Second Life para montar uma empresa virtual. Não sabemos o que vai acontecer daqui pra frente. O que sabemos é que o processo não vai ser interrompido. Essas tecnologias vieram para ficar e se transformar. É o que agora está sendo chamado de simbiose ser humano e máquina. Isso transformou completamente a nossa vida, a maneira como vivemos, aprendemos, ensinamos e nos entretemos. Crianças de dois anos estão começando a manusear esses equipamentos e têm até mais destreza do que uma pessoa mais velha.
E acaba se refletindo nas relações humanas?
Interferem em tudo. Os meios de comunicação de massa modificaram completamente as nossas relações. Não vivemos mais apenas relações face a face. Inclusive essas relações também são mediadas. Dois irmãos podem estar vendo televisão juntos e até trocarem idéias a respeito do que vêem, mas a relação deles tem esse outro elemento que traz mensagens para dentro de casa.
Até que ponto isso é bom e a partir de que momento começa a ser maléfico para as relações humanas?
Essa pergunta é típica. Não dá para a gente medir se é bom ou se é ruim. Faz parte da evolução humana. E o ser humano é muito complexo. A fala nos torna muito complexos. Se as linguagens estão crescendo, e aquilo que nos constitui é a linguagem, isso significa que a nossa complexidade também está crescendo. É muito difícil dizer se é bom ou ruim porque o ser humano é paradoxal. O bem e o mal convivem em nós de uma maneira bastante difícil. Não adianta achar que o ser humano é bonzinho. Temos essa força contraditória dentro de nós. E em ambientes de complexidade muito alta essas forças contraditórias ficam mais indomáveis. É o preço que o ser humano paga. Agora, eu acho que é a inteligência humana que está crescendo. O que não significa que ela está sendo sempre usada para o bem do ser humano. O que a gente enfrenta é esse crescimento de complexidade. E não é determinismo. As pessoas falam em crescimento, em evolução, e logo pensam em determinismo. Nada está pré-determinado. Por isso que eu digo que não podemos prever de maneira nenhuma quais serão os desenvolvimentos do mundo e as conseqüências para o ser humano. Mas de uma coisa podemos estar certos: essas tecnologias não vão desaparecer, como a escrita não desapareceu. A fotografia, embora ela seja transformada no computador, ainda existe como uma linguagem e o ser humano se apega muito às linguagens que ele cria porque elas nos constituem.
A tecnologia é uma forma de exclusão para quem não tem acesso?
Sim, é uma forma de exclusão. Qualquer conquista, ou qualquer aquisição que venha enriquecer, e tornar mais complexas as relações humanas e o próprio ser humano, se ela não for uma aquisição acessível a todos, aquele que não tem acesso é decididamente excluído. É aí que vemos as enormes contradições que existem no desenho do planeta. Há países na Europa com 100% de conexão. Na Itália e na Finlândia quase 100% das pessoas têm telefone celular e se comunicam por meio dele na sua plena potencialidade. Não adianta falarmos ‘ah, no Brasil tantos têm celular’. Mas qual potencialidade do celular é explorada? As pessoas mais simples têm celular mas simplesmente usam para receber chamadas. E a tendência é que o celular se transforme em uma coisinha parecida com um ser vivo, ele vai fazer de tudo. Mas, para isso, é preciso ter habilidades desenvolvidas e a primeira delas é a habilidade da alfabetização.
E a alfabetização no Brasil deixa a desejar…
No Brasil é um problema endêmico. O Darcy Ribeiro escreveu, nos anos 60, em um artigo chamado ‘Sobre o óbvio’, que no ano 2000 o Brasil seria visitado por sua excentricidade. Não a excentricidade das florestas e da natureza, mas porque aqui ainda existiria uma coisa rara que é o analfabeto. E o analfabetismo cresce, ao invés de diminuir. Quando se fala em inclusão digital acham que é colocar um computador na mão de cada pessoa, de cada criança. E isso é uma bobagem. Não resolve porque o computador exige uma alfabetização ainda mais complexa do que a alfabetização letrada, que eu chamo de alfabetização semiótica. A pessoa tem que ser capaz de fazer conexões, ler signos diferentes da linguagem verbal e, ao mesmo tempo, tem que estar alfabetizado.
Ou seja, não basta ser treinado para usar a máquina…
Não adianta treinar a apertar botões! O computador não funciona se não houver uma interface, uma interação. Essa é a característica da cultura digital. Ela é, por natureza, interativa, ou então exige que a pessoa tenha o equipamento mental para fazer essa interface com o computador. É a mesma coisa que estar diante de você e não saber falar. A interface não se estabelece.
E o preconceito, como fica em uma era repleta de informações?
Boa pergunta, porque desde que a linguagem alfabética foi implantada no Mundo Grego, toda novidade tecnológica é recebida com resistência pela sociedade. A invenção de Guttemberg, a prensa manual, permitiu que os livros fossem publicados em série ao invés de ser um objeto único, mas as classes ricas continuaram pagando os escribas durante cerca de 50 anos porque aquilo parecia de uma vulgaridade atroz. E quando o cinema apareceu aconteceu a mesma coisa. O cinema imbecilizava as massas. E tem gente que diz que o computador desumaniza o homem. Tenho rebatido essa idéia de que as pessoas vêem o desenvolvimento tecnológico como algo separado do ser humano. Mas não. Todo desenvolvimento tecnológico se incorpora a vida humana. Preconceito tem porque toda invenção tecnológica exige um processo de adaptação, inclusive a função dos meios anteriores é remanejada. E nenhum meio desaparece. Só quando ele é substituído por um dispositivo mais incrementado e a função deles é inteiramente substituída. Caso contrário o que temos é um caleidoscópio muito rico. O que nos diferencia dos animais é o fato de nós falarmos, apesar de que os animais também têm formas de simbolização e um certo desenvolvimento de inteligência. Ou seja, todos esses meios que vão aparecendo vão expandindo e incrementando cada vez mais a capacidade humana de se comunicar.
A senhora diz que não tem como prever o futuro da comunicação e qual será o grau de evolução do mundo digital. Como analisa isso?
Eu estou convicta de que essa simbiose do ser humano com as máquinas vai se tornar cada vez mais íntima. Hoje, já está se falando em computação onipresente. E não vai demorar muito, uma década, no máximo, para que os chips se tornem tão baratos que vão existir dezenas de computadores para cada pessoa, só que invisíveis. As paredes, os ambientes, os carros serão inteligentes. E isso já existe. Tem carro que é guiado pelos motorista, mas quem orienta o carro é um sistema de GPS, um computador. Todos os ambientes a nossa volta serão interfaceados. Todas essas previsões que estou fazendo são em função de em quais áreas os países mais avançados estão investindo. País que não cria tecnologia, know how tecnológico, tem que importar. É o problema brasileiro. Quando a gente pensa, por exemplo, numa universidade alemã que recebeu de uma empresa privada um investimento de 200 milhões de Euros, e esta universidade tem um centro de nanotecnologia – os grandes centros do mundo estão investindo em nano e biotecnologia… O nosso corpo vai ser habitado por chips. Nano quer dizer do tamanho de moléculas. A previsão é que, com isso, é possível curar doenças, deficiências, atrofias, etc.
Mas é uma realidade ainda muito distante da nossa, aqui no Brasil?
Não. O Brasil é um país desigual e paradoxal. Diz-se que é um país pobre. Imagina, não é pobre! A classe rica é extraordinariamente rica e extraordinariamente ostensiva. O que temos aqui é um desequilíbrio abissal. Não é que o Brasil está longe de ter tecnologia de ponta porque as empresas multinacionais que estão no aqui já começaram a receber o retorno destes grandes investimentos. Aquilo que se transforma em uma aquisição para o ser humano, se transforma em uma necessidade da espécie. Nos países mais contraditórios, evidentemente, essas desigualdades vão ficando cada vez mais profundas. Um abismo. Temos regiões aqui anteriores à era feudal. É um verdadeiro palimpsesto cultural e social. São camadas e camadas que convivem e isso fica muito interessante para as pessoas nos visitarem, não é? Os estrangeiros que adoram exotismo têm aqui uma floresta densa.

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