Pela cultura do Brasil

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Os aficionados por música popular brasileira com certeza já ouviram falar em Elifas Andreato. Artista gráfico, cenógrafo e jornalista, este paranaense radicado em São Paulo, mais especificamente em Perdizes, revolucionou o mercado de capas de discos na década de 1970.
Além de trabalhar em praticamente todas as grandes empresas de comunicação brasileiras, em televisão e mídia impressa, Elifas participou da criação de publicações como a revista Placar e da coleção História da  Música Popular Brasileira, além do semanário Opinião, também na década de 70, do semanário Movimento e da revista Argumento.
O trabalho de capista continuou durante a década de 80, com destaque para discos de Chico Buarque (Ópera do Malandro, Almanaque e Vida), Vinicius de Moraes e Toquinho (Arca de Noé 1 e 2, Um Pouco de Ilusão), Toquinho (Aquarela, Casa de Brinquedo), Clara Nunes, Paulinho da Viola (Zumbido, Amor e Natureza, Nervos de Aço, Cantando e Chorando, Prisma Luminoso, Eu Canto Samba e Bebadosamba), João Bosco (Essa é Sua Vida e Bandalhismo), Egberto Gismonti, Martinho da Vila, Zeca  Pagodinho,  entre outros. Entre os Prêmios Sharp de Música e os outorgados pela  Associação dos Produtores de Discos recebeu 24, concedidos a capas de discos. O último, em 1997, Prêmio Sharp de Música, pela criação da  capa do CD Bebadosamba, de Paulinho da Viola.
Um dos seus mais recentes projetos acaba de chegar a 100ª edição: a revista Almanaque Brasil de Cultura Popular reúne o que há de mais interessante e relevante sobre a história brasileira – a história contada corretamente, de maneira clara e objetiva. Almanaque, publicação mensal que circula a bordo dos vôos da TAM e por assinatura, é apenas um dos projetos da Elifas Andreato Comunicação Visual, situada em Perdizes.
Elifas recebeu o Guia Daqui Perdizes/Pompéia para esta entrevista, momentos antes da abertura da exposição de algumas de suas capas e pinturas de artistas da música popular brasileira, como Caetano Veloso, Noel Rosa, Adoniran Barbosa, Carmem Miranda, Pixinguinha, no Teatro Fecap. A exposição vai até 9 de dezembro. Visitas de segunda a sexta, das 9 às 21h, e aos sábados e domingos, das 14 às 20h.

São quantos anos de carreira?
De carreira, se considerar que comecei a pintar na fábrica (na Fiat Lux) ainda, com 14 anos e estou com 60. Profissionalmente, comecei em 1967 na Editora Abril como estagiário. Fiz estágio nas revistas Claudia, Quatro Rodas, Manequim, depois na Realidade. Fui para a Abril Cultural já como chefe de artes, em 1969. Eu fiz uma carreira muito rápida na Abril. Quando a gente é pobre não perde as oportunidades. Tem que aproveitar. E quando entrei na Abril tive contato com grandes jornalistas, com materiais, com informação… Eu comecei a desenhar sem parar. Chegou até um ponto de intimidar os diretores de arte porque eu me dedicava tanto ao trabalho e ao estudo das técnicas. O único diploma que eu tenho é o de alfabetização para adultos. Todo o resto aprendi fazendo, quebrando a cara. Até hoje é assim.

Era mais prazeroso trabalhar naquela época, quando não te procuravam para fazer uma capa de graça, por exemplo?
Eu fiz muita capa de disco e hoje todo mundo acha que eu tenho que produzir de graça. Eu fiz isso a vida inteira e não quero mais fazer. São mais de 400 capas de discos. Mas numa época em que isso ainda rendia algum dinheiro. Hoje em dia não vale à pena. Hoje eu só faço para os amigos ou para quem não pode mesmo pagar. Trabalho com música desde 1970, quando fiz a História da Música Popular Brasileira, na Abril Cultural. Eu me tornei amigo não só da minha geração que fazia música, mas também dos antigos, que já na época estavam esquecidos. Convivi com Ismael Silva, Lupicínio Rodrigues, o próprio Pixinguinha. Enfim, eu era moleque, mas era apaixonado por música. A coleção da Abril foi um trabalho que impressionou muito pela qualidade gráfica e modernidade. Em 1971 eu fiz a primeira capa de disco para o Paulinho da Viola, uma capa ainda com fotografia; em 1972 fiz Dança da Solidão, uma capa com desenho, e em 1973 fiz Nervos de Aço que foi uma capa que revolucionou a história da capa de disco no Brasil.

Por quê?
Porque fiz uma capa que denunciava a separação do Paulinho da mulher. Paulinho chorando com flores na mão. A partir disso, ocupei um espaço vago, eu diria. O artista gráfico, até então, ou capista, tinha uma função meio burocrática. Fulano está gravando um disco e precisa fazer uma boa foto… Eu, desde cedo, percebi que não ia fazer nada que fosse idéia de outra pessoa. Só ia fazer aquilo que eu pudesse ouvir, ler, assistir. Fiz isso no teatro, na literatura e me custou caro porque não era costume. Os editores, os diretores estavam acostumados com a história do sujeito que desenha ser meio idiota, não ter escola e ter o dom para desenhar. Eu decidi desenhar o que entendesse de um conteúdo. Tinha percebido, muito menino, que a opção por arte gráfica era a opção de fazer a multiplicação visual, até porque eu não dava muita importância aos originais. Eu tenho pouquíssimos originais porque os que tinha vendi para fazer o Almanaque. Uma concepção, por exemplo, foi o cartaz de Calabar, direção do Fernando Peixoto, uma peça censurada. Aquela tatuagem feita em couro de porco, com uma garrafa de Coca Cola e uma serpente… Naquela época, a Cola Cola simbolizava o imperialismo americano, e nós fazíamos parte de uma geração que se opunha ao regime militar e que lutava por liberdade de expressão.

E os ícones americanos chegando…
Eu não fiz muito uso disso, excepcionalmente no Calabar. Entendi que uma serpente enrolada numa garrafa de Coca Cola era uma metáfora sobre os perigos que o imperialismo corria naquele momento. A serpente era um pouco o que nós achávamos que éramos. E eu dei sorte de entender que eu tinha que interpretar, no papel, aquilo que era o conteúdo da obra porque eu sabia que, antes de mais nada, o contato seria visual. Antes de ouvir o disco você vê a capa, antes de ler a matéria, você vê a ilustração, antes de ir ao teatro, você vê o cartaz. Minhas opiniões sempre foram críticas. E como eu nunca fiz o que eu não gostava, jamais aceitei fazer um trabalho por dinheiro, nunca corri o risco de fazer um trabalho ruim. Eu posso ter feito desenhos ruins, mas as causas sempre foram nobres. Não me envergonho de nada. Eu abandonei a Abril, no auge da minha carreira, ganhando um baita de um salário, para fazer o jornal Opinião no Rio.

Com Raimundo Rodrigues…
Sim, e com o Tonico Ferreira e o Fernando Gasparian. Depois viemos para cá e fizemos o jornal Movimento. Ainda fiz a revista Argumento, que a censura fechou no quarto número. A minha carreira foi feita de manifestos. Tudo que eu desenhei e ainda desenho são manifestos.

E o Almanaque?
Hoje, o Almanaque é um manifesto pelo Brasil. São as boas notícias todos os meses. Há exatamente cem meses eu recolho, na história do Brasil, os bons exemplos de brasileiros ilustres e de fatos fundamentais que a história brasileira não contou.

A história do Brasil está sendo esquecida?
Acho que sempre foi. A história oficial do Brasil é mentirosa e foi manipulada. O poder tem a capacidade de manipular a história ou de fazer a história ser registrada a seu favor. Quando na verdade a história tem seu próprio curso. Você pode esconder o papel que teve um determinado personagem lá no momento em que se lutava pelo fim da escravidão. Mas eu descubro. Eu posso dizer que teve um grande brasileiro que deu a vida por isso. A história sonega esse dado. Ao se fazer a relação história e tempo vai perceber que o espaço de tempo é muito pequeno entre essas coisas. Eu, por exemplo, estou militando na batalha por um Brasil melhor, um País mais justo, mais humano, capaz de educar as suas crianças e etc. já tem 40 anos. Tem trabalho meu e do Toquinho, feito para a Declaração dos Direitos das Crianças, que foi reconhecido pela ONU como contribuição para a humanidade, e que ninguém ouve. Porque só se tem, dentro deste espectro voltado para as crianças, o lixo. As vagabundas enriquecem cafetinando as crianças. Como a gente não faz isso, ficamos no limbo. Queixo-me porque quem perde são as crianças e o Brasil. O dano que uma Xuxa causou a uma geração, vamos custar muito tempo para recuperar.

E como quebrar essa massificação da cultura?
É difícil porque temos uma indústria cultural que é absolutamente cínica, como são os nossos políticos. Essa indústria cultural cria esses produtos e subprodutos sempre visando o lucro. Hoje melhorou um pouco, é verdade. Tem empresas um pouco mais responsáveis socialmente. Mas ainda assim essas grandes empresas investem 0,4% do seu faturamento em projetos sociais e gastam 18% na divulgação deles. É o marketing. E quase todas fazem isso: “0,4% do meu faturamento cuida da creche tal. Depois eu pago na televisão, na Globo ou sei lá onde, milhares de reais para divulgar que eu sou bacana com as crianças daquela creche”. Esse é o cinismo que existe. Por isso fiz a opção de trabalhar sério e não fazer concessões, de não trocar nada por dinheiro e me recuso a fazer qualquer coisa que seja em benefício próprio, no sentido de tirar proveito de um marketing que é bem costumeiro também – isso entre publicitários, jornalistas, artistas que ostentam as maravilhas que fazem pelos outros. Eu me recuso a fazer negociatas. Tenho dificuldade até hoje para sobreviver aqui porque não faço acerto com ninguém. Não aceito suborno, não aceito conchavo.

Você acredita no trabalho de ONGs e em projetos como Criança Esperança?
Olha, o Criança Esperança tem dois aspectos. O positivo é que ele, de fato, arrecada dinheiro e ajuda alguns projetos. O que é muito ruim é o que a Globo faz de promoção em cima disso. O que a Globo se beneficia não tem preço. É aquela história da prostituição que eu falo. A Globo transforma o Criança Esperança no seu confessionário. Todo tempo a Globo faz lixo, aliena, faz a cabeça, manipula jornalismo e em certo período do ano ela faz o Criança Esperança e o transforma em uma vitrine, vai salvar o Brasil da miséria. Isso é repugnante. Com o dinheiro que essa empresa tem e com o monopólio que ela significa… Não podemos esquecer que a Globo é uma concessão publica, um patrimônio do povo, do Brasil. Tem a tevê Futura que ela ajuda, mas no horário nobre o que ela faz para educar a criança? Zero! Se quiser vai acordar às quatro e meia da manhã para ver aquela porcaria de Telecurso. Por que não tem uma hora de programa no horário nobre dedicado ao que esse País precisa, que é educar as crianças? Cuidar da higiene, prevenir doenças, ensinar as mães a cuidarem de crianças desnutridas. Mas daí você diz assim “mas no Fantástico tem o dr. Dráuzio Varella”. Certo. Agora, proporcionalmente você sabe o que significa isso dentro da grade? É 0,03%. E, no entanto, eles se acham o máximo. Qualquer funcionário da Globo age com se fosse suprema autoridade. E o Poder tem medo deles. Eles têm um poder absurdo que jamais poderiam ter, se considerarmos que isso é concessão pública e que o estado pleno e democrático não poderia permitir um monopólio tão absurdo e tão avassalador quanto é a tevê Globo.

O senhor mora há muitos anos em Perdizes. Como é morar e trabalhar em um bairro como este?
O bairro é perfeito pra mim. Sou vizinho do Tom Zé e do Paulinho Nogueira. Todo mundo que vem do interior, da roça como eu, precisa ser conhecido no lugar. É como se buscássemos a nossa cidadezinha. Aqui eu ando e, se não tiver dinheiro, como na padaria, ponho gasolina no meu carro, compro remédio na farmácia. E ao mesmo tempo você faz disso uma comunidade muitas vezes solidária; é possível alguns movimentos como a preservação do Parque da Água Branca, em que eu me envolvi quando o Maluf quis meter a mão. São Paulo é muito grande. Se você me tirar da região Perdizes, Pompéia, Pinheiros, Água Branca, acho que não sei como sair. E aqui temos tudo.

Além do Almanaque, quais são seus mais recentes projetos?
Fundamos o Instituto Zero à Seis (www.zeroaseis.org) em parceria com psiquiatras e neurocientistas da Holanda. Este instituto é para cuidar de crianças de zero a seis anos de idade porque a Organização Mundial da Saúde já constatou que a criança não cuidada neste período, quando chega na pré ou na adolescência, ela já está incapacitada de aprendizado e socialização. Achamos que é um projeto a que podemos nos dedicar. Fundamos o Instituto há um ano e até hoje não conseguimos uma doação mensal para pagar uma salinha e uma secretária. E não estou falando de projetos. Estabelecemos um plano de cinco anos para atender inicialmente em São Paulo, por áreas, em conjunto com a Secretaria de Educação e Saúde, com gente séria. Seriam atendimentos na área médica. É para aquela mãe que não tem consciência de que a criança precisa ter os cuidados devidos de zero a seis anos de idade para ser capaz de aprender. E tem outro dado que mostra que o jovem que tenta e não consegue estudar é considerado deficiente mental. Ele não consegue aprender por uma série de coisas que começa na gestação, passa pelo aleitamento, nutrição, por um processo. Se a criança não receber isso, esperar que com 20 anos ela seja super dotada, é uma utopia. Acontece o oposto, você a encosta no crime.

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